Dia Internacional da Literacia: Uma conversa criativa com Luís Leal Miranda

O Dia Internacional da Literacia é celebrado anualmente a 8 de setembro, desde 1967. 

Este ano, o tema do Dia Internacional da Literacia é “Promover a literacia na era digital”. 

A literacia é um “direito humano fundamental”, sendo “crucial” para “uma sociedade mais justa, mais pacífica e mais sustentável”, refere a UNESCO. 

Ainda assim, em 2024, segundo esta organização, 739 milhões de jovens e adultos no mundo inteiro não tinham competências básicas de literacia, isto é, não conseguiam “ler, escrever, compreender, interpretar, criar e comunicar” de forma plenamente eficaz. 

Sem estas competências, fica comprometida a capacidade destes cidadãos de participar ativamente na sociedade, bem como de lidar com os desafios da vida e com um mundo cada vez mais abundante em informação. 

É precisamente para estimular o desenvolvimento da literacia e das competências de comunicação que permitem a participação cívica plena que trabalha a Cátedra UNESCO Comunicação, Literacia Mediática e Cidadania, da Escola Superior de Comunicação Social, do Politécnico de Lisboa. 

Brincar com a palavra “literacia” para melhor entender o mundo 

Desafiámos Luís Leal Miranda, autor conhecido por inventar palavras, para uma conversa sobre o conceito de literacia. Falámos também de formas de promover a literacia e de palavras que refletem o impacto do mundo digital nas nossas vidas. 

Leia a entrevista ao autor do livro “Desdicionário da Língua Portuguesa” e da página de Instagram Novas Palavras Novas. Pode também ver o vídeo da conversa na página de LinkedIn da Cátedra. 

Nas suas palavras, o que é literacia? 

Para mim, literacia é poder compreender a fundo uma coisa. Não é só saber mais ou menos o que é isto ou aquilo, mas saber como funcionam as coisas. No caso da leitura não é só saber ler, é saber compreender os textos. É uma espécie de uma compreensão que vai além do superficial. 

Existem muitos tipos de literacia: literacia mediática, digital, financeira, científica… Se tivesse de inventar um novo tipo de literacia, qual seria? 

Nas Novas Palavras Novas, eu já fiz mais de 800 palavras e há uma que é muito antiga, que é a “leiteracia”. A “leiteracia” é saber analisar os ingredientes no pacote de leite e as datas de validade. 

E outras? 

Se pensarmos no significado da palavra “literacia”, depois podemos aplicá-la a muitas coisas. Há de haver uma literacia para tudo. Se calhar, saber dobrar roupa, por exemplo, é literacia doméstica. 

Mas de todas as literacias que existem, eu acho que a mais importante talvez seja a literacia emocional. A partir do momento em que percebes que o que estás a sentir é exatamente aquilo, vai ser mais fácil comunicar esse sentimento e vai ser mais fácil para as outras pessoas compreenderem. As palavras ajudam-nos.  

Portanto, eu diria que uma área em que é preciso investir é a literacia emocional, e sugiro até fazê-lo para adultos. 

O que torna o mundo melhor quando as pessoas têm bons níveis de literacia? 

Quando temos melhores níveis de literacia, compreendemos melhor o outro e compreendemo-nos melhor a nós próprios. Isso permite-nos a todos comunicar melhor. Isso torna-nos menos preconceituosos, mais empáticos e mais capazes de viver a nossa vida, ou seja, de cumprir o nosso potencial. 

A falta de literacia – qualquer uma delas, mas sobretudo saber ler e saber compreender textos – produz confusões e produz ignorância. E pode tornar o mundo e as pessoas mais conflituosas. 

A literacia faz com que não nos deixemos levar por notícias falsas, boatos ou simplesmente informação preconceituosa. Analisamos as coisas de maneira mais crítica. Observamos com mais atenção e não somos tão precipitados a chegar a conclusões. 

Portanto, acho que um mundo com mais literacia seria um mundo com mais clareza, e um mundo com mais clareza seria o mundo com mais paz. 

Que políticas públicas poderiam ser implementadas para promover a literacia? 

A primeira coisa em que eu penso é que as pessoas tinham de ler mais. E, para as pessoas lerem mais, é preciso ter mais facilidade no acesso à leitura. Então, se quisermos atirar para o ar uma ideia um pouco mais radical, talvez fosse bom ter bibliotecas abertas 24 horas, que tivessem boas cadeiras e bons sofás, e que tivessem uma cantina bem apetrechada, onde as pessoas pudessem estar e ficar. Podia ser uma maneira de tornar as bibliotecas um ponto de paragem. 

Gostava também que os turistas viessem a Lisboa e quisessem visitar a biblioteca porque era tão boa e tão incrível. Toda a gente falava disso. Podíamos usar as bibliotecas como ponto de atração turística. 

O que pode cada pessoa fazer para estimular a literacia no seu quilómetro quadrado? 

Uma das formas mais eficazes de promovermos a literacia à nossa volta é recomendarmos livros fixes e coisas de que gostamos aos nossos amigos, familiares… O nosso entusiasmo vai fazer com que as pessoas se entusiasmem também. É isso que gosto que façam comigo. 

Outra ideia, que não é propriamente revolucionária: se não estás a gostar do livro, não te obrigues a ler. Podes largar, ninguém te julga. [risos] Não julgar as pessoas que deixam livros a meio. Eu tinha uma amiga que gostava muito de ler, mas raramente acabava os livros. Ela dizia: “Eu não precisei de saber o fim, eu retirei dali o que eu precisava daquele livro”. Percebo essa lógica e às vezes também faço isso. 

Para terminar, pode dar exemplos de palavras inventadas por si que se relacionem com o tema da comunicação na era digital? 

“Scrollapsar”, que é pegar num telemóvel para saber as horas e acabar a ver um vídeo de alguém a cortar sabão. Isto acontece-nos bastante, pegarmos no telefone para ver as horas e, de repente, sermos sugado por um buraco negro. 

“Neurochacha” ou “Neurochachada”. São os conteúdos das redes sociais que nem sabemos porque é que estamos a ver, mas que são estupidificantes e só causam entorpecimento. 

“Appneia” é a pausa existencial causada pela imersão prolongada em aplicações móveis. 

“Velocidade hiper-cínica” são as notícias, escândalos e tendências que circulam tão depressa que perdem o valor. Tudo é consumido com indiferença, sarcasmo e ironia. 

“Epistolofobia digital”. É o medo de receber e enviar e-mails 

“Infotrofia”, que é a condição degenerativa de pensamento crítico provocada pela exposição constante a informação escolhida por algoritmos ajustados aos nossos preconceitos. 

A infotrofia é real, rematou Luís Leal Miranda.